candomblé e pessoas lgbtqia+

quando acolher também é resistir

REPORTAGEM E FOTOGRAFIA: Laura luz

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"Deus é brasileiro", ao menos, é o que diz a sabedoria popular. O Brasil, no entanto, é um país de contrastes geográficos, sociais, econômicos e, claro, religiosos. Segundo dados do Datafolha (2020), 50% dos brasileiros se identificam como católicos, somados aos 31% de evangélicos, é bem possível que o nosso "Deus brasileiro" tenha sido importado das areias da Galileia.


Outros credos, também com o carimbo de "tipo exportação", não tiveram uma aceitação tão generalizada ou popular. Os rituais e crenças das religiões de matriz africana desembarcaram em terras brasileiras, ainda no começo da nossa história como nação, sem nenhum tipo de luxo ou reconhecimento, apenas impulsionados pela cruel máquina da escravidão colonial e pela resistência hérculea ao desmantelamento de identidades culturais dos povos escravizados.


Hoje, segundo a mesma pesquisa, 2% dos brasileiros se identificam como seguidores do Candomblé, Umbanda e outras religiões de matriz africana. Um número pequeno comparado à nossa população, mas que mostra o alcance e os desdobramentos de uma resistência - e por que não de fé - que nasceu séculos atrás.


É também no âmbito da resistência que, hoje, quase 3 milhões de brasileiros com 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS): Orientação sexual autoidentificada da população adulta (2022). Resistência porque o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+.


Segundo relatório produzido em 2021 pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, 316 pessoas LGBTQIA+ foram vítimas da LGBTfobia, um aumento considerável de casos de violência ou assassinato em comparação com 2020, quando 237 mortes foram registradas. Nesse sentido, o Brasil ainda é o país onde mais se assassina pessoas LGBTQIA+: uma morte a cada 29 horas.


E é nesse paralelo de resistências e identidades: uma religiosa e outra íntima, que esses vetores se cruzam. Para longe das grandes massas cristãs e dos grupos majoritários nos grandes centros das sociedade brasileira, para as periferias e outros espaços mais isolados. Gêmeos em sua marginalidade, religião e identidade de gênero se encontram e se acolhem mutuamente.


O candomblé

Epígrafe


E foi inventado o candomblé...


No começo não havia separação entre

o Orum, o Céu dos Orixás,

e o Aiê, a Terra dos Humanos.

Homens e divindades iam e vinham,

coabitando e dividindo vidas e aventuras.

Conta-se que, quando Orum fazia limite com Aiê,

um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas.

O céu imaculado do Orixá fora conspurcado.

O branco imaculado de Obatalá se perdera.

Oxalá foi reclamar a Olorum.

Olorum, Senhor do Céu, Deus Supremo,

irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais,

soprou enfurecido seu sopro divino

e separou para sempre o Céu da Terra.

Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens

e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida.

E os orixás também não poderiam vir à Terra com seus corpos.

Agora havia o mundo dos homens e dos orixás, separados.

Isolados dos humanos, habitantes do Aiê,

as divindades entristeceram.

Os orixás tinham saudades das suas peripécias entre os humanos

e andavam tristes e amuados.

Foram queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo

que os orixás pudessem vez ou outra retornar à Terra.

Para isso, entretanto,

teriam que tomar o corpo material de seus devotos.

Foi a condição imposta por Olodumare.


Oxum, que antes gostava de ir à Terra brincar com as mulheres,

dividindo com elas sua formosura e vaidade,

ensinando-lhe o feitiço de adorável sedução e irresistível encanto,

recebeu de Olorum um novo encargo:

preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás.

Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua delicada missão.

De seu sucesso dependia a alegria dos seus irmãos e amigos orixás.

Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta,

banhou seus corpos com ervas preciosas,

cortou seus cabelos, raspou suas cabeças,

pintou seus corpos.

Pintou suas cabeças com pintinhas brancas,

como as penas da galinha-d 'angola.

Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços,

enfeitou-as com jóias e coroas.

O ori, a cabeça, ela adornou ainda com a pena ecodidé,

pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio-da-costa.

Nas mãos as fez levar abebés, espadas, cetros,

e nos pulsos, dúzias de dourados indés.

O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas

e múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais.

Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de ori,

finas ervas de obi mascado,

com todo o condimento de que gostam os orixás.

Esse oxo atrairia o orixá ao ori da iniciada e

o orixá não tinha como se enganar em seu retorno ao Aiê.

Finalmente as pequenas esposas estavam feitas,

estavam prontas, estavam odara.

As iaôs eram as noivas mais bonitas

que a vaidade de Oxum conseguia imaginar.

Estavam prontas para os deuses.


Os orixás agora tinham seus cavalos,

podiam retornar com segurança ao Aiê,

podiam cavalgar o corpo das devotas.

Os humanos faziam oferendas aos orixás,

convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs.

Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos.

E, enquanto os homens tocavam seus tambores,

vibrando os batás e agogôs, soando os xequerês e adjás,

enquanto os homens cantavam e dançavam e davam vivas e aplaudiam,

convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê,

os orixás dançavam e dançavam e dançavam.

Os orixás podiam de novo conviver com os mortais.

Os orixás estavam felizes.

Na roda das feitas , no corpo das iaôs,

eles dançavam e dançavam e dançavam.

Estava iniciado o Candomblé


(Prandi, 2001,p. 526-528)




Para compreender a intrínseca relação entre o Candomblé e o acolhimento aos grupos minorizados é necessário conhecer a história da religião, que tem sua origem em solo brasileiro e, desde então, luta para continuar existindo.


Chegando no Brasil na época colonial, entre os séculos 16 e 19, o culto aos Orixás foi trazido pelos negros yorubás escravizados de África, vindos de países como Nigéria, Benin e Togo.


As divindades candomblecistas, chamadas de Orixás, estão inteiramente ligadas às forças da natureza: ar, fogo, terra e água. De maneira muito simplificada, elas detêm o poder sob esses elementos e são vistas como guardiões de rios, matas, cachoeiras, mares, montanhas e estradas. Segundo o autor Pierre Verger, em seu livro “Orixás” (Fundação Pierre Verger, 2018):


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O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização.

O Candomblé, em si, nasce no Brasil, mais especificamente em Salvador, na Bahia (por isso é chamado de religião afro-brasileira), e teve sua origem a partir de bases de cultos tradicionais africanos. Ou seja, o que chega em solo tupiniquim são diversas manifestações religiosas de África. Por exemplo, das pessoas escravizadas trazidas da região centro-sul, chegou o culto a Inkisis. Da região oeste, o culto a Orixá e Voduns. Todos com culturas e tradições diferentes, mas vivenciando a mesma tragédia.

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MAPA: ABBEVILLE, N. SANDSON D' (1656)

Em África, não havia uma homogeneidade sobre como o panteão dos Orixás é organizado. Cada Orixá era cultuado de maneira individual e soberana em sua região, por exemplo, Xangô em Oyó, Oxum em Ijexá e Iemanjá em Egbá. Em alguns casos, pessoas de regiões diferentes sequer tinham conhecimento das outras divindades. Em outros, algumas divindades eram rivais. Para sobreviverem à realidade da escravização, a união se tornou a única opção.

Eles passam a contar uns aos outros as histórias de seus cultos e a compartilhar essas tradições, até para legitimar seus próprios mitos, os itãs. As pessoas começam a flexibilizar sua cultura e criam uma nova realidade. É a partir da necessidade de sobrevivência que nasce o Candomblé, afirma a historiadora e ekedy, Ana Lúcia Camargo.

Desde sua criação, a tradição e história da religião é passada oralmente, dos mais velhos para os mais novos. Existe uma relação de troca entre as pessoas e as divindades ancestrais, por isso, entre as práticas do culto estão o sacrifício animal e as oferendas. Uma das formas de se cultuar os Orixás é por meio da dança e do canto. Para quem é de Candomblé, dançar e cantar é o mesmo que rezar. Assim como cozinhar e comer é um ato sagrado na religião.


É em torno das panelas mexidas diariamente pelas Yabassês - mulheres responsáveis pelas comidas - que os candomblecistas fortalecem seus laços com o divino. Cada Orixá tem um ou mais pratos específicos que são servidos como oferendas de pedidos ou agradecimentos. Por exemplo, o famoso acarajé para Iansã, o amalá para Xangô e o caruru de Ibeji. Por meio deles, é criada uma conexão direta entre o mundo físico e o espiritual, representando a manutenção da vida. Além de alimentar o corpo, ela alimenta o espírito. A função de alimentar ultrapassa os muros dos terreiros. Em muitos casos, comunidades inteiras são alimentadas graças à cozinha do Candomblé.


Dentro dos terreiros, a organização se dá por hierarquia e as funções são separadas por gênero e tempo de iniciação na religião. Quero dizer, há mistérios ritualísticos que homens jamais poderão acessar, assim como há funções que mulheres jamais poderão ter dentro de um ilê (terreiro), ambos complementando-se.

No Candomblé, o tempo de iniciação também dita o quanto você saberá sobre os ritos. Assim como na vida, há uma preparação que segue uma ordem cronológica para que você esteja apto a compreender os preceitos e os fundamentos.


É assim que, cada um em sua função, se constitui uma família de Candomblé. E dizemos família porque é exatamente dessa forma que a estrutura se dá, com pai ou mãe de santo, irmãos de santo e até avós.


É importante salientar que não existe uniformidade na cultura de Candomblé. Existem diferentes formas e expressões da religião que se manifestam de diversas maneiras por meio das “nações”.

Base hierárquica:


Babalorixá/Yalorixá (pai de santo/mãe de santo): autoridade máxima dentro do terreiro, também chamado de Zelador(a)


Ogã: cargo dado apenas a homens que não entram em transe. Podem ser tocadores de atabaque e/ou responsáveis por outros trabalhos dentro do terreiro, zelando da casa e do Orixá


Ekedy: cargo dado apenas a mulheres que não entram em transe. Além de auxiliarem os zeladores da casa, são responsáveis por cuidar dos Orixás enquanto estão incorporados


Egbomi (irmão mais velho): pessoa que já cumpriu o período de sete anos de iniciação


Yawó: pessoa recém iniciada ou que ainda não cumpriu os sete anos de iniciação


Abiã: pessoa não iniciada na religião

as nações

A divisão entre nações se dá a partir dos diferentes grupos étnicos que chegaram ao Brasil durante a escravização. Não só os ritos acabam por se diferenciar uns dos outros, mas a língua falada dentro do terreiro também.


Há pouco, expliquei sobre a base hierárquica do Candomblé, utilizando os termos mais comuns, originários do yorubá, língua falada na nação Ketu. Mas quando se trata da nação de Angola e Jeje, por exemplo, os nomes de cada cargo mudam, assim como a ritualística e, até mesmo, algumas divindades.


Achou muita coisa para processar? Vou simplificar! Com a organização do Candomblé no Brasil, três grandes nações foram definidas e cada uma delas fala uma língua, correspondente a um grupo étnico africano. São elas:

nação ketu

fala-se yorubá e cultua os Orixás. É a nação mais popular no Brasil

Nação Angola ou Congo-Angola

fala-se kimbundo ou umbundo e cultua os Inkissis (nome dado às divindades, correspondentes aos Orixás)

Nação jeje

fala-se ewe-fon e cultua os Voduns (nome dado às divindades, correspondentes aos Orixás)

As diferenças também podem ser notadas nas formas de dançar, nas vestimentas, nas cores utilizadas por cada divindade, nos fios de conta e na percussão dos instrumentos.


A diversidade entre uma nação e outra é notada apenas pelos adeptos. Para os de fora, tudo é Candomblé, e o preconceito é indiscriminado. Essa é uma das coisas que nos une enquanto religiosos. Todos os candomblecistas estão na mira do preconceito, discriminação e marginalização.

MARGINALIZAÇÃO DO CULTO E ACOLHIMENTO DOS INDESEJADOS

A marginalização e demonização do Candomblé o acompanha desde sua criação. A religião dominante no Brasil na época escravagista era a católica, que enxergava o culto dos negros escravizados como bruxaria, tornando portanto proibidas práticas religiosas e culturais de origem negra, como o samba e a capoeira.


Mesmo depois da Independência do Brasil, em 1822, o Candomblé continuou sendo marginalizado, tendo imagens de Orixás e objetos sagrados ao culto apreendidos. Alguns desses itens só deixaram de estar em posse do Museu da Polícia Cívil em 2020, cerca de 130 anos depois da abolição da escravatura.


Segundo a cientista social e assistente de pesquisa no Instituto Matizes, Jade Soares, é por meio dessa marginalização e criminalização de pessoas, pelo Estado e pelo cristianismo, que nasce a intersecção entre pessoas LGBTQIA+ e o Candomblé. Essa é a relação entre a marginalização e a presença da religião nas regiões periféricas, onde se alojam todos os indesejados pela sociedade: pretos, pobres, gays, lésbicas, travestis e “macumbeiros”.

Nos anos 1980, por exemplo, tivemos a ‘Operação Sapatão’, que perseguiu e prendeu lésbicas e depois se estendeu a travestis, marginalizando seus corpos. Ou seja, foi retirado o direito da existência dessas pessoas. E essa situação perpassa o que foi a perseguição religiosa sofrida pelo Candomblé também, pontua Jade.

Explorar como a marginalização das identidades sexuais e de gênero e de religião se cruzam é dar voz a uma narrativa que já existe de maneira clara para os praticantes de Candomblé dentro dos terreiros: para o povo de santo não deveria existir discriminação, pois sabem na pele as mazelas de ser marginalizado.


Não há dados que demonstram quantas pessoas da população LGBTQIA+ estão presentes no Candomblé, mas a representatividade e presença desse grupo dentro do culto é notável historicamente. Para o babalorixá, pós-doutor em Ciências Sociais e professor de antropologia, Patrício Carneiro, as religiões afro-brasileiras se tornaram um ambiente religioso mais favorável para essa população, que em alguns casos a sexualidade também era tida como sinal de força, axé e poder.

Embora se pense que a religião sempre foi aberta a receber pessoas LGBTQIA+ com mais facilidade, a história alerta para momentos não tão positivos. Existem diferentes formas do Candomblé enxergar a sexualidade e é possível encontrar diversos posicionamentos.

As religiões refletem as sociedades nas quais elas estão alocadas. O terreiro não é uma ilha, ele é uma comunidade religiosa que também reflete a sociedade. Você vai encontrar casas onde o olhar principal sobre as pessoas não se pauta na sexualidade e casas com sacerdotes homofóbicos, intolerantes e até racistas. Não é uma questão uniforme, afirma Patrício.

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Joãozinho da Goméia

Foto: Fundação Pierre Verger

Exemplo disso é a trajetória de Joãozinho da Goméia, conhecido como “Rei do Candomblé”. Ele, homossexual assumido e afeminado, quebrava barreiras da tradicionalidade em Salvador. Pela perseguição e pressão das casas e sacerdotes mais velhos e tradicionais, João - assim como outros pais de santo homossexuais - migra para o Sudeste. Foi chegando no Rio de Janeiro que Joãozinho ganhou destaque nacional, graças as suas aparições na mídia, pelos consulentes famosos que lhe procuravam, além de políticos e pessoas influentes na sociedade.


Se houve alguém com coragem para enfrentar os tabus e preconceitos, não só do Candomblé, mas da sociedade brasileira do século 20, essa pessoa foi Joãozinho da Goméia. Chico Anysio chegou a fazer um personagem, popularmente conhecido como “Painho”, que dizem ter sido inspirado em Joãozinho.

As mulheres lésbicas também sempre existiram no Candomblé, mas com uma presença, obrigatoriamente, mais discreta, mais disfarçada. Em alguns momentos da história, foram impedidas de assumir o posto de mães de santo, por não ser algo bem visto nas

casas de axé.

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mãe stella de oxóssi

Foto: Fundaj/divulgação

Entre nomes nacionalmente conhecidos está Mãe Stella de Oxóssi, uma das maiores referências ancestrais do Candomblé, assumidamente lésbica e tremendamente respeitada. Falecida em 2018, Mãe Stella estava casada há 13 anos com Graziela Domini.


A historiadora, mestre em Humanidades e ekedy, Ana Lúcia Camargo, explica que há uma diferença no culto de

Orixá no Brasil, em comparação com África, já que na sociedade africana não há uma grande aceitação de pessoas LGBTQIA+. Por que a religiosidade acolhe boa parte das LGBTQIA+? Talvez seja isso que devemos pensar. Estamos falando de um fenômeno brasileiro mesmo. Talvez por tudo que aconteceu na diáspora, por terem sofrido todo processo de escravização, tenha sido mais fácil aceitar a diversidade e outras minorias. É uma hipótese.

Ela, assumidamente lésbica, reforça que é importante não generalizar. O acolhimento acontece, sim, mas não em todas as casas. Em algumas, até certo ponto. Em outras, sem a possibilidade de assumir cargos. Afinal, cada terreiro é um universo.


A religião em si não é pautada na sexualidade, mas na relação que cada pessoa mantém com o seu Orixá pessoal e os da sua comunidade. Segundo Patrício, a própria mitologia revela diferentes maneiras de lidar com essas questões, e traz como exemplo os Orixás Logum Edé e Oxumarê, portadores dos princípios femininos e masculinos, inclusive no conceito de gerar vida.

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Itã: Oxumarê usurpa a coroa de sua mãe Nanã

“Oxumarê era filho de Nanã.

No seu destino estava inscrito que ele deveria ser

seis meses um monstro e seis meses uma linda mulher.

Aos poucos, a mulher Oxumarê revoltou-se com a mãe,

pois não conseguia nunca uma relação de amor estável.

Quando estava tudo bem com ela e seu amante,

ela virava o monstro e afastava o companheiro.


Um dia Oxumarê encontrou-se com Exu.

Exu semeou um conflito maior entre o Arco-Íris e a velha Nanã.

Exu convenceu Oxumarê que a velha deusa deveria pagar

pelos males que atormentavam o seu filho.

Exu aconselhou Oxumarê

a tomar a coroa da nação jeje, que pertencia a Nanã.

Oxumarê foi ao palácio de Nanã e aterrorizou a todos na sua forma de serpente.


Nanã suplicou-lhe que não matasse ninguém, tentando dissuadi-lo de seu objetivo.

Mas acabou entregando a Oxumarê sua coroa

e Oxumarê foi coroado rei dos jejes.


(PRANDI, 2001, p.227)



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Itã: Logum Edé é salvo das águas

"Logum Edé era filho de Oxóssi com Oxum.

Era o príncipe do encanto e da magia.

Oxóssi e Oxum eram dois orixás muito vaidosos.


Orgulhosos, eles viviam às turras.

A vida do casal estava insuportável

e resolveram se separar.


O filho ficaria metade do ano nas matas com Oxóssi

e a outra metade com Oxum no rio.


Com isso, Logum se tornou uma criança de personalidade dupla:

cresceu metade homem, metade mulher.


(PRANDI, 2001, p.137).


A tradição é uma das justificativas para a dificuldade de aceitação por parte de alguns terreiros, mas Patrício afirma que costumes também se transformam. Hoje, vemos um movimento muito alvissareiro, muito promissor, não só das práticas religiosas, mas das mentalidades que, aos poucos, vão mudando essa realidade que marca a religião.


Esse movimento de mudança não vem apenas por meio da religião, mas da educação social. É interessante pensar que parte do conservadorismo acerca de pessoas LGBTQIA+ está relacionado à influência cristã e eurocêntrica sob o olhar da culpa e do pecado. O aprofundamento dos estudos sobre matrizes africanas também são formas de resistência.

"aQUENDA QUE O PAJUBÁ VEM AÍ!"

Já percebeu que, muitas vezes, integrantes da comunidade LGBTQIA+ usam um dialeto próprio entre si? Chamado “Pajubá”, a linguagem deriva do nagô e yorubá e é uma das formas de identidade e resistência.


Criado entre as décadas de 1960 e 1970, no contexto da ditadura militar, o Pajubá ganhou sua primeira cartilha em 1995. Chamada “Diálogo de Bonecas”, foi escrita por Jovanna Cardoso da Silva - idealizadora e fundadora do Movimento Político Trans na Associação de Travestis e Liberados do Rio de Janeiro - e condensa os principais termos e aplicações em frases. Muitas das palavras vistas nesse dialeto são comumente ouvidas dentro dos terreiros de Candomblé, por exemplo:

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Adé: homem homossexual


Ajeum: comida


Amapô/Mona: mulher


Aqué: dinheiro


Dilonga: copo


Dilongá: prato


Ejó: confusão/fofoca


Ekê: mentira


Erê: criança


Ilê: casa


Izala: fome


Lorogun: briga


Obé: faca


Ocó: homem


Otim: bebida alcoólica


Picumã/Mucunã: cabelo

Não apenas no sentido de acolhimento, mas também no sentido de luta, o Candomblé contribuiu para a preservação da vida desses corpos marginalizados, largados à própria sorte. Foi dentro dos terreiros que muitos deles encontraram acolhida e tiveram contato com o yorubá, possibilitando a criação do dialeto.


Se para lésbicas e gays a realidade era dura, para travestis a opressão era ainda maior. Em 1987, por exemplo, ocorreu a “Operação Tarântula”, em São Paulo, institucionalizada sob o pretexto de acabar com a AIDS, foi responsável por mais de 300 travestis violentadas pela polícia.

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O Pajubá livrou muitas travestis dos perigos. A partir desses códigos elas podiam avisar umas às outras sobre as coisas que estavam acontecendo, sem que as pessoas de fora da comunidade pudessem entender. Era uma estratégia de sobrevivência, afirma o antropólogo e babalorixá, Rodney William.


Hoje, o Pajubá rompeu as barreiras da comunidade LGBTQIA+, além de ter se tornado um dialeto “divertido” ou “engraçado”. Mas é importante compreender que foi por meio dele que muitas pessoas lutaram, resistiram e sobreviveram.


A CAMINHO DA ROÇA

Ilê, casa, templo, roça. Todos são nomes dados ao famoso terreiro. Independente da forma que se escolha chamar, todos têm o mesmo significado.


Ao sair para a saga de entrevistas, não imaginei o quanto de magia e axé me aguardavam. Isso porque, quando você é candomblecista e está habituado a frequentar apenas sua própria casa, entender ou enxergar o que existe para além dos muros do seu ilê é um processo.


Me deparei com outras culturas, outras formas de manifestação do sagrado e não poderia ficar ainda mais maravilhada com o Candomblé. Te convido a caminhar comigo nessa trajetória de resgate, resistência, fé e amor.



MAPA da região metropolitana de são paulo

"A pessoa de bom caminho não se importa com o que o outro é ou deixa de ser” - pai Anderson

TEMPLO DE OXALUFÃ

barracão do templo de oxalufã

O primeiro terreiro a me receber foi o Templo de Oxalufã, em São Caetano do Sul (SP). Localizado no centro da cidade, é ponto de referência para os moradores que passam diariamente em frente ao muro pintado de branco, com o nome do terreiro escrito, anunciando que ali é uma casa de santo.


Se você passar por lá às 8h, é possível que o portão já esteja aberto. Há uma loja de artigos religiosos dentro do ilê, onde os visitantes e os próprios filhos de santo podem comprar diversos artigos, de velas a fios de conta.


Ao passar pelo portão, há um corredor largo que te leva ao barracão. O espaço é amplo e decorado com mesas e cadeiras para acomodar os que chegam. A assistência - local para os visitantes e convidados sentarem e assistirem as festividades - comporta um número grande de pessoas e o barracão - ou congá, como preferem chamar - é ainda maior.

O babalorixá responsável pela casa, Anderson Salgado, também é conhecido por Anderson King, ou - para os filhos de santo - Babá King. Quando nos conhecemos, ele estava em uma empreitada além da religiosa. Anderson foi candidato a deputado estadual, defendendo a bandeira das religiões de matriz africana e assistência social, assunto que ele retomaria em conversa comigo, em um futuro nem tão distante.


Nesta minha primeira visita, era dia de festa no Templo de Oxalufã. Comemoração da obrigação - ritos ao Orixá de caráter restrito a iniciados - de um pai de santo de Xangô. Além dos filhos de santo de Anderson, os filhos desse zelador também estavam na casa. Contei pouco mais de 30 pessoas se arrumando e papeando por ali.


Fui levada até a sala onde o Babá atende seus consulentes. Era naquele lugar que eu poderia fazer entrevistas e conversar com as pessoas indicadas por ele. Fique à vontade. Talvez a gente não tenha tempo de conversar hoje, mas o mais importante é você ouvi-los. A sala foi ocupada por sete pessoas, igualmente entusiasmadas e nervosas para contar suas histórias.


A primeira pessoa com quem pude conversar foi Maykon Gonçalves, um rapaz de 27 anos, sorridente, de fala tranquila. Ele, que nasceu em uma família católica, passou pelo processo de descoberta da sexualidade turbulento que boa parte dos jovens cristãos passam.


Maykon conta que não sofreu represálias diretas, mas os olhares, as falas nas homilias, tudo era contra o que ele era. Quando eu entendi que ali eu não seria aceito de fato, comecei a me afastar.

Ainda enquanto frequentava a igreja, Maykon começou a se relacionar com Vinicius, seu marido atualmente e também filho de santo do Templo de Oxalufã. Juntos, descobriram a Umbanda e o Candomblé e enxergaram uma nova possibilidade de vida. Eu vi que ali eu seria aceito de qualquer jeito. Eu já fui apresentado como namorado da outra pessoa, coisa que seria inimaginável dentro da igreja. Aquilo foi um alívio para mim. Foi meu primeiro passo. Foi quando eu entendi que no Candomblé eu poderia ser quem eu era.


Vinicius Moreira (28), marido de Maykon, também veio de uma família cristã, mas evangélica. Criado em um sistema extremamente rígido, ele é o retrato de tantos jovens que sofrem violências sérias por assumirem a homossexualidade. Vinicius cresceu ouvindo um discurso de demonização de tudo o que ele sentia, de tudo que ele era. Cresceu acreditando que seu corpo, suas vontades, seus sentimentos, eram erros pecaminosos que o levariam para o inferno. Eu vim de uma criação onde eu era rechaçado, humilhado, jogado de lado por causa do meu jeito, por como eu vim ao mundo, e isso me trouxe muitas feridas.


Com a situação insustentável, Vinicius saiu de casa para morar com uma tia. Quando eu decidi sair do laço da minha família, eu fiquei um tempo sem acreditar em Deus, porque, para mim, Deus era aquele ódio que eles pregavam.


Foi com a tia que Vinícius conheceu a Umbanda. Tempos depois, se relacionou com Maykon, e juntos conheceram o Templo de Oxalufã, casa onde estão até hoje.

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casal maykon e vinicius

A relação com os pais continua abalada. Antes, pela sexualidade. Agora, pela religião. Minha mãe disse que eu entreguei minha alma para o diabo. Hoje isso não me impede, mas eu acho isso monstruoso, porque você não pode ser diferente da religião deles, do Deus deles. Isso me machuca muito.


A voz de Vinicius embarga quando ele fala da mãe. As feridas que a falta do acolhimento abriram, ainda custarão a fechar. Mas as portas abertas dentro do Templo de Oxalufã foram suficientes para sanar as dores do desprezo sofrido por ele. Foi o Candomblé que o fez retomar a esperança de que existem pessoas boas no mundo. Ele me diz que, se pudesse deixar um recado para o seu eu do passado, pegaria em suas mãos e o levaria embora dizendo que Deus não é ódio, nem imposição. Que Deus é muito maior, Deus é amor. O Orixá é amor.


Essa mensagem final de Vinicius veio seguida de um abraço. É difícil não se emocionar com uma história tão dura, vinda de alguém com tanta fé em dias melhores.

É na prova de fé que encontro Fernando Win (25), também vindo de uma família evangélica e extremamente conservadora. Ele me conta que demorou muito tempo para se aceitar, até que se apaixonou por um menino e não teve como deixar de lado sua sexualidade.

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Fernando win

Quando saiu de uma denominação evangélica, por não concordar com o discurso que demonizava sua história, também passou por um período de ceticismo. Embora fosse convidado por uma amiga para conhecer o terreiro, não acreditava que as entidades eram reais, nem que as atividades do culto eram verdadeiras. Foi em um encontro com uma Preta Velha que os caminhos de Fernando mudaram e, de cético, passou a acreditar fielmente.


Ele foi o primeiro filho homossexual do Templo de Oxalufã, mas diz que a sexualidade nunca entrou em questão. O interesse da casa sempre foi em colocá-lo em um bom caminho. O que importa é se as pessoas estão felizes. Essa deveria ser a preocupação de todas as religiões, não com quem eu me deito.


Fernando é uma pessoa muito bem resolvida com sua sexualidade e religiosidade. Assim como Suzanne Lobracci (33), que frequenta a religião desde criança. A mãe, católica, não aceitava a presença de Suzanne no Candomblé, o que ocasionou em um afastamento. Aos 15 anos, ela se assumiu lésbica para a mãe, que teve menos dificuldade em aceitar sua sexualidade do que em aceitar a iniciação da filha no Candomblé. As outras religiões nos julgam muito, mas não é porque somos gays ou lésbicas que não temos boa índole.

Mesmo com a relação mãe e filha em evolução, Suzanne diz que a mãe dava recados sutis sobre a presença dela em espaços compartilhados com pessoas da igreja. Quando eu morava com ela, se ela fizesse um evento da igreja no prédio, ela dizia que eu não precisava descer.


Emocionada, ela me conta que a mãe não aceitava a entrada dela no culto e que a presença dela na sua obrigação foi a maior conquista da sua vida – melhor que um diploma.


Enquanto retomo o fôlego e agradeço Suzanne por compartilhar sua história comigo, Gabriela Frezzato (27) entra na sala. A história dela esbarra nas outras que ouvi até então.


De família católica, Gabriela se definia como alguém muito obediente, mas ao crescer e se entender enquanto lésbica, percebeu que os ensinamentos não iam de encontro com o que acreditava, com o que ela era. Foi no Templo de Oxalufã que ela se encontrou. As religiões de matriz africana te ensinam a se aceitar por inteiro, do jeito que você é.

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Suzzanne Lobracci

Por questões de crença, a família não aceitava a sexualidade de Gabriela, então os conflitos eram constantes. Eu comecei a entender que era um processo não só meu, mas deles também. Eu acabei me anulando para não gerar nenhum desconforto para eles, mas o desconforto ficou todo comigo.

Hoje, Gabriela diz que tudo é mais leve. Os pais aceitam a religião e respeitam o fato de terem uma filha lésbica. No começo, eu vinha para o terreiro para chorar. Era o único lugar que eu tinha um apoio, um abrigo. O Candomblé foi crucial para que essa relação se transformasse.


Todas as histórias têm um ponto em comum: a busca pela aceitação, a procura por um lar, o reconhecimento de uma família. O Candomblé surge para muitos como o amparo tão sonhado. Mas nem todos tiveram essa sorte.


É o caso de Gabriela Colognesi (23). Ela, que começou a frequentar a religião antes de se assumir lésbica, buscava o apoio que não encontrava em casa. Mas nem em seus piores pesadelos poderia imaginar que o local em que ela depositava toda sua confiança seria motivo de grande decepção.

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Gabriela Frezzato

imagem cedida

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Gabriela Colognesi

foto: lafaeff

Gabriela foi exposta durante sua descoberta. Os integrantes do terreiro fizeram questão de procurar sua mãe para dizer que Gabriela era lésbica. A mãe, mesmo kardecista, era extremamente preconceituosa, o que obrigou Gabriela a sair de casa e a morar de favor na casa de uma namorada, na dependência de terceiros.

Ela não segura as lágrimas. Nem ninguém que está dentro da sala. A história de Gabriela é marcante e dolorosa. Ela diz que deixou de acreditar na religião por um tempo e prometeu que nunca mais pisaria em nenhum terreiro.


Foi depois de muita dor e complicações que Gabriela cruzou caminhos com o Templo de Oxalufã. Em um toque de Exu, Seu Marabô a chamou para conversar. Foi nos braços dele que Gabriela teve seu choro acolhido e ouviu que ali ela teria uma família de verdade.

Chorando do início ao fim da nossa conversa, Gabriela reafirma que não sabe nem se estaria viva se não fosse Exu. Eu não estaria nem aqui. Eu teria me acabado nas drogas, desistido de tudo.

Gabriela teve a oportunidade de conhecer a religião em sua pior versão, mas conserva em seu coração os sentimentos mais puros sobre tudo. A gratidão pela acolhida, a forma como sua vida foi transformada pelo axé, é o que importa para ela. Sua mensagem é pacificadora e de amor.


Alguém bate na porta, o toque vai começar, precisamos nos apressar. Sou convidada para assistir e registrar. O terreiro está tomado por pessoas vestidas de branco, divididas entre os filhos de santo de Anderson e filhos do pai de santo que estava de obrigação. É uma festa breve para Xangô - o Orixá da justiça.


Me permitem entrar no congá. O piso é coberto por areia, o teto é forrado por samambaias, No canto direito, uma cachoeira artificial enfeita o barracão. Tem até uma tartaruguinha lá dentro da água, me avisam. Próximo dela, os atabaques e ogãs aguardam para o início dos trabalhos.


O ponto de saudação a todos os Orixás começa a ser cantado. A casa, que já estava cheia, parece ainda mais lotada com todas as vozes cantando. A defumação vem em seguida e o cheiro das ervas tomam conta de todo o terreiro. Esse é o momento em que sabemos que a festa definitivamente está pronta para começar.


Xangô entra no barracão. Todos abaixam suas cabeças em sinal de respeito ao rei de Oyó. De três em três, os filhos de santo se dirigem até um dibula (esteira de palha) estendida aos pés de Xangô para pedirem a bênção do Orixá.


Quando todos já passaram pelo rito de saudação, Xangô se apronta para dançar. Outros Orixás viraram (incorporaram) para acompanhar o rei em sua festa. Consigo avistar Maykon, Vinicius e Fernando na roda, felizes, como se não houvesse mais nada no mundo além daquele espaço, além daquele momento.

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Depois de alguns minutos a festa se encerra. Os Orixás se recolhem, Anderson agradece a presença e colaboração de todos, e combinamos de conversar outro dia. Me despeço de todos e marco meu retorno.


Não muito tempo depois, consigo encontrar com Anderson, na mesma sala do outro dia, para conversarmos com um pouco mais de tranquilidade.


Anderson é requisitado. Além de ser um líder religioso muito conhecido, é o fundador do Projeto Bandeira Branca, que mapeia e reúne terreiros de matriz africana da região de São Caetano do Sul e do ABC paulista para a divulgação de seus trabalhos, organização de ações sociais e fortalecimento da luta por direitos e segurança ao culto.


Na época em que conversamos, ele lutava contra denúncias de vizinhos que queriam proibir a existência do terreiro naquele endereço, por puro preconceito. Como candidato a deputado estadual, Anderson ainda mantinha uma rotina pesada de trabalho nas ruas, mas, ainda assim, reservou um tempo para falar comigo.


Quem é Anderson Salgado?, perguntei. Um homem de 40 anos, fundador e babalorixá do Templo de Oxalufã, que existe há seis anos. Nascido na religião, ele é o que chamamos de “abiaxé” - quando a mãe é iniciada na religião durante a gravidez, faz com que a criança já nasça iniciada também.


Anderson passou três anos na Bahia e mais três em Minas Gerais estudando a religião e se preparando para assumir suas responsabilidades religiosas. Ele percebeu uma falta de humanidade em alguns terreiros e, como já tinha destino de zelador, abriu seu próprio templo. Atualmente, o Templo de Oxalufã tem cerca de 280 filhos. Desses, ao menos 15 são assumidamente LGBTQIA+.

Para mim, não existe diferença entre eles. São as mesmas cobranças e os mesmos incentivos. Muitos chegaram fechados, abalados, com medo, mas vendo que aqui eles seriam tratados com respeito, como todos, nos tornamos uma grande família.

Anderson é pai carnal de Íris, uma menina de 17 anos, recém declarada lésbica. Essa relação com os filhos de santo LGBTQIA+ fez com que o processo de aceitação da filha fosse mais tranquilo para ambos.


Ele me conta que alguns filhos já sofreram preconceito na porta do terreiro. Uns vizinhos falaram para um filho de santo, gay, engrossar a voz. Tivemos que chamar a polícia, e reforça que todos da casa intervém para que essas situações não aconteçam.


Conversar com Anderson é tranquilo. Autodefinido como direto, não tem problemas em dizer o que pensa - de forma respeitosa, é claro. Para ele, a sexualidade dentro da religião nem é um tema de discussão, porque o Candomblé não visa com quem o outro se relaciona, mas o ser humano em sua essência.


Quando a entrevista acaba, sou levada até a entrada do terreiro. Há filhos de santo abraçando o zelador, que muito receptivo brinca com todos e se despede de mim.


O Templo de Oxalufã representa para muitos a casa que não tiveram, a família que escolheram para a vida, o acolhimento sonhado. Anderson segue em sua missão de levar quem o procura para o caminho da aceitação e do amor.

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"NÓS SÓ PODEMOS SER DO JEITO QUE NÓS SOMOS" - Pai TATtO

Ilé Omí Oya Àse Ògún Òmémén

Quando agendei a entrevista com o babalorixá Tatto de Oxóssi e seus filhos de santo, não tinha me atentado que seria recebida durante uma festa de Nanã, Obaluaê e Oxumarê. Nanã, a mais velha das yabás (Orixás mulheres), é também a dona do meu ori (cabeça). Aquela visita seria ainda mais íntima para mim.


É em um bairro relativamente próximo ao centro de Francisco Morato (SP), que se encontra o Ilé Omí Oya Àse Ògún Òmémén. Do começo da rua já é possível escutar o atabaque, as vozes e as palmas. Na entrada, os enfeites anunciam a festa e os Orixás que ali se encontram. Em um pequeno espaço antes da porta do barracão é possível identificar alguns assentamentos de Exu - o sentinela.


Ao passar pela estreita porta, o olhar é tomado por, pelo menos, 20 pessoas vestidas com seus saiotes e turbantes, cantarolando. No final do pequeno barracão, há pelo menos quatro atabaques sendo tocados e outros filhos de santo tocando instrumentos de percussão típicos do culto.

No centro do barracão, uma pilastra sinaliza onde fica o ariaxé da casa. É ali que se concentram todos os fundamentos que mantém uma casa de Candomblé espiritualmente de pé. É em volta desta pilastra que se dança, invocando, saudando e transmitindo energias sagradas.


No canto esquerdo do barracão ficam as cadeiras para os visitantes e convidados. É na última fileira dela que eu me sento para acompanhar os trabalhos.


Com a casa cheia, filhos de santo com suas roupas devidamente engomadas e concentrados, as palmas se cessam. É hora de Tatto fazer a abertura oficial. Em seu discurso, reforça a importância de uma religião marginalizada como o Candomblé ser acolhedora com o próximo e não se isentar das discussões políticas.


De onde estou, consigo ver todo o barracão e sentir o cheiro da comida que as mulheres da casa estão cozinhando para servirem depois da festa. É possível identificar o cheiro do frango e cabrito cozidos, da farofa torrando na panela e do arroz fresco. A ligação do Candomblé com a comida é intrínseca e sagrada, é uma forma direta de cultuar o Orixá.

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BARRACÃO


IMAGEM CEDIDA POR FILHOS DA CASA

As cantigas em yorubá e a forma que cada filho dança denunciam a nação da casa: são de Ketu. Para cada toque, um passo. Para cada ponto cantado, uma gesticulação. Para cada saudação puxada, gritos de alegria. Ali é possível sentir a presença viva do que significa Orixá.


Como toda festa exige, os convidados divinos chegam - consigo identificar Iemanjá, Oxum e Xangô. Logo, é a hora de Oxumarê. Alguns filhos de santo da casa já estão vestidos para receberem o Orixá em seus corpos. Oxumarê, representado por uma serpente, leva a beleza e encantamento para cada canto do barracão.


Depois dele, é hora de Obaluaê fazer as honras. O rei da cura é recebido por três filhos de santo, devidamente vestidos com palha, uma das pessoas é uma criança de seis anos. Foi neste momento que meu coração disparou. Obaluaê é também meu Orixá, algo íntimo para mim e minha espiritualidade, por isso não contive as lágrimas.


Em seguida, a senhora da noite, a respeitada - e temida - Nanã. Sendo ela a única do barracão, a Orixá mais velha do panteão domina os olhares e desconcerta os ogãs que não conseguem acompanhar seu bailado. Obaluaê e Oxumarê - filhos de Nanã, de acordo com os itãs - a olham dançar com respeito e admiração.


Em festas de Candomblé, é comum que o pai de santo da casa convide seu próprio pai de santo e terreiros amigos para participarem. Tatto teve o prestígio de receber seu pai de santo, diretamente da Bahia, para prestigiar o xirê. O ancião, filho de Oxumarê, acabou por virar - ou incorporar - no Orixá após uma dança de Nanã.


A festa não podia ficar mais emocionante. Um pai de santo, incorporado, no terreiro de um filho, em uma festa do seu Orixá… isso é sinônimo de axé, de honra para a casa. Os filhos de santo em polvorosa gritavam de alegria. A energia pura do Orixá, mais uma vez, se fez presente.


Oxumarê, antes de ir embora, abraçou alguns filhos da casa, andou até a assistência, tocou nos meus ombros e me fez ficar de pé. Sem que eu pudesse esperar, o Orixá me abraçou e eu pude sentir que cada parte do corpo do pai de santo formava uma grande serpente, tal como Oxumarê é.


Enquanto era envolvida por seus braços, sentia paz, alegria, êxtase e uma porção de outros sentimentos inenarráveis. Entre todos eles, nada era mais forte que o sentimento de acolhimento. Aquele abraço era a representação de tudo que meu trabalho até ali simbolizava: acolher, abraçar, receber, amar, o desconhecido.

união e irmandade

IMAGEM CEDIDA POR FILHOS DA CASA

Passado o momento de festa, é a hora da ramunha - conhecida como dança da libertação, ela conta a história do povo escravizado. Apontando para partes do corpo, cada gesto representa tudo que viram, tudo que sentiram, tudo que falaram, toda a trajetória de luta e a tão almejada paz e liberdade.


Em seguida, as mulheres da casa começam a montar o barracão com mesas e cadeiras para que todos possam se acomodar e fazer o ajeum (comer). Os yawós (pessoas com menos de sete anos de iniciação) sentam-se no chão, por sinal de respeito aos mais velhos. Eu, como yawó, segui a tradição.


Enquanto todos comiam, conversavam e riam, era possível ver a alegria pulsar de cada um. O Candomblé tinha alimentado suas almas e, agora, cumpria mais um de seus papéis: alimentar o corpo.

Terminando o ajeum, Tatto me convida para sentar ao seu lado. Me fala sobre a história do ilê: É um dos mais antigos da cidade, existe desde 1972, se orgulha em dizer. Ele, que assumiu recentemente a frente do terreiro após o falecimento da matriarca, reafirma durante toda a conversa que segue os mandamentos dos seus mais velhos.

As nossas enciclopédias são vivas. Elas não estão desenhadas no papel. As linhas que desenham nossa tradição são as rugas dos nossos mais velhos, que por meio do pensamento deles, das lições que eles nos dão em axé, em vida, que nós nos respaldamos.

Tatto é um homem de 33 anos, formado em biologia e letras, com especialização em antropologia. Tem fala mansa, ouvidos atentos e olhar vigilante. O jovem babalorixá carrega um peso histórico quando fala sobre a importância de sua casa, do acolhimento dos filhos e da construção diária de um Candomblé inclusivo.


Eles buscam hoje um espaço dentro dessa tradição e, notadamente, nós estamos a caminho de rever muitos conceitos da nossa vida, da nossa cultura e da nossa tradicionalidade, diz.


Ele, que se identifica como uma pessoa assexual, assume que existem limitações e barreiras sociais, filosóficas e religiosas. Como exemplo, Tatto fala sobre os papéis ocupados dentro do culto por pessoas trans e travestis, assim como o papel do ogã e da ekedy, ou o culto as Iyami Oxorongá.


Iyami são ancestrais femininas, também conhecidas como “coletivo feminino da ancestralidade”, segundo Tatto, e o culto é exclusivo para mulheres - por mulheres, neste caso, se entende pessoa com os órgãos reprodutores femininos. Ou seja, a inclusão de pessoas trans neste culto é de pouca compreensão para a tradição religiosa.

tatto explica sobre o fio escamado

Se para o culto algumas questões são mais difíceis de encarar, outras parecem ter destaque. Na casa de Tatto há um fio de conta diferente, “escamado”, que só pessoas em três condições podem usá-lo, independente do gênero: virgens, viúvos e assexuais.


Quando Tatto fala sobre o acolhimento que tem em sua casa, me apresenta Juliana de Marchi (38), a ekedy da casa. Muito orgulhoso, o babalorixá me conta que ela é a responsável por ressignificar muitos conceitos que ele tinha sobre pessoas trans dentro do culto. Ela é quem o atualiza das questões sociais envolvendo essa população e de que forma o ilê pode agir para ser mais inclusivo com essas pessoas.


Juliana, que também aceita compartilhar sua história comigo, é lésbica e professora. Filha de mãe agnóstica e pai católico, estudou em escola de freira na infância, até o falecimento de seu pai.

Aos 18 anos, se entendeu enquanto mulher lésbica e enfrentou conflitos temporários com a mãe. Aos 22 anos, teve seu primeiro relacionamento com outra mulher, que a levou para conhecer a Umbanda. Foi a partir dali que Juliane começou a trilhar seu caminho com o Orixá até encontrar o pai Tatto. A ekedy, que conta não ter enfrentado preconceito dentro do Candomblé, diz que a religião foi essencial para o reconhecimento de si.

Quando eu entro para a Umbanda, algumas coisas são diferentes para mim, na minha perspectiva em relação à posse do corpo, ao espírito, as questões raciais, estruturais, a intolerância religiosa e preconceito.

Entre os exemplos de evolução dentro do terreiro, Juliana fala sobre o nome social e a resistência que algumas pessoas enfrentaram durante um tempo. Ela traça uma comparação religiosa, já que dentro da religião, os filhos de santo ganham um novo nome, o orunkó. Ela questiona: por que é tão fácil chamar outra pessoa pelo orunkó, mas não é aceitável chamar pelo nome social?, e reforça que todos os discursos precisam ser revistos, inclusive os raciais.


Neste momento, me permito fazer uma pequena explicação a você, leitor. Dentro da tradicionalidade de Candomblé, após sua iniciação, você ganha um novo nome, pelo qual será conhecido dentro do seu terreiro. Esse nome é trazido pelo seu Orixá e apresentado depois da sua primeira obrigação. Em terreiros de nação Angola, esse nome é conhecido por “dijina”. Em outras nações é chamado de “orunkó”. Há os que afirmam que ambos existem, mas são coisas diferentes: orunkó é o nome dado pelo Orixá no momento da obrigação ao filho de santo, mas que não deve ser amplamente divulgado, é algo íntimo, e dijina é o nome pelo qual socialmente você será conhecido dentro da religião e pelos seus irmãos e irmãs de santo.


Questões regionais à parte, a fala de Juliana provoca uma autocrítica ao povo de Candomblé. A importância de ser reconhecido e chamado pelo seu nome de santo dentro da comunidade revela também a necessidade de reafirmar a sua identidade. Você não é só a fulana. Você é a fulana, filha de um Orixá! Se para nós, enquanto povo de Candomblé, a identificação perante ao sagrado é tão importante e assegurada, por que a dificuldade em reconhecer o nome que uma pessoa trans gostaria de ser chamada?


Antes de se despedir de mim, Juliana deixa uma mensagem de esperança. Ela acredita que as crianças, a nova geração, terão uma consciência muito mais evoluída que as nossas e isso tornará o mundo um lugar melhor.


Olho ao redor enquanto guardo meu equipamento. Há filhos de santo dormindo pelo barracão. Já acabou a festa, já arrumaram a cozinha e colocaram colchões para acomodar os que ficaram. A hora passou rápido, já era madrugada. A conversa com eles era assim, leve e tranquila, fácil de perder a noção do tempo.


O Candomblé tem disso. Ao final do culto, a confraternização continua. No dia seguinte, Tatto continuaria os trabalhos. Com um sorriso largo no rosto ele me espera na saída. Você é sempre muito bem-vinda aqui. Me indica alguns de seus escritos e me convida para as festas posteriores.


Nesta noite, festejamos uma família, a família de Nanã. Ali haviam pessoas, das mais diferentes formas, que se juntavam todos em uma única família: a família Omí Oya Àse Ògún Òmémén. E, naquela noite, fiz parte dela também.

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"O que seria dos lgbtqia+ se não fosse o candomblé?" - Pai Rodney william

Ilê obá ketu axé

Falar da minha visita ao terreiro de Pai Rodney de Oxóssi é falar de uma pesquisa anterior a esse trabalho. O babalorixá responsável pelo Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá é conhecido não só no meio religioso, mas também é uma grande personalidade do mundo acadêmico. É antropólogo, escritor, doutor em Ciências Sociais e há mais de 20 anos pesquisa relações raciais, racismo e religiões de matriz africana. Foi por meio de um de seus artigos para a revista CartaCapital que conheci o trabalho dessa personalidade do Candomblé.


É em uma chácara, em Mairiporã (SP), que está localizado o terreiro de Rodney. Para chegar até lá, passei por caminhos de terra, árvores, muitas curvas e um lago. Ao chegar no portão consigo ter a dimensão de quanto o ilê é grandioso. Um portão branco se abre quando me aproximo. Uma senhora me recebe e diz que posso entrar. É só subir e virar à esquerda. Ele está lá dentro, ela me aponta a direção.


Enquanto subo a pequena ladeira de paralelepípedos, reparo que estou em uma encruzilhada.

entrada do ilê obá ketu axé omi nlá

Há um assentamento de Exu ao meu lado, faço uma breve reverência em sinal de respeito e consigo ver a casa de Rodney. Peço licença e entro. Ele me avista e vem sorridente ao meu encontro.


Depois de me apresentar a casa e ao Fábio, seu assessor e braço direito, vamos ao escritório onde poderemos conversar com mais calma. De todas as ideias que tive sobre como seria estar na presença de alguém que eu admiro tanto, Rodney supera minhas expectativas com sua humildade e gentileza.


Você é do santo?, ele me pergunta enquanto se ajeita na cadeira. Respondo que sim, filha de Nanã. Ele sorri, diz que sou muito bem-vinda em sua casa e que está feliz em me receber.


Ele se autodefine como um pai de santo atravessado por um antropólogo e um antropólogo atravessado por um pai de santo, esse é o caminho que o Orixá lhe deu para entender com mais profundidade tudo que o desafia no universo religioso.


Quando começamos a falar sobre Candomblé, Rodney traz em pauta a escravização e o racismo. Não há como falar da religião sem falar sobre as questões raciais, é em cima delas que todo o resto está pautado.

Eu sou continuidade. Quando me refiro ao processo de escravização, eu não falo só dos meus antepassados, eu falo de mim também. Ser negro é viver uma luta coletiva, é viver uma existência coletiva.

É a partir da concepção de resistência que a conversa se inicia. Resistência essa que, segundo Rodney, começa desde os navios negreiros. A nossa grande vitória enquanto civilização que se reinventa no novo mundo, a partir da diáspora, é ter sobrevivido. Resistir também é sobreviver.


É refletindo sobre minhas “provocações”, como ele gosta de chamar, que Rodney faz apontamentos importantes sobre como os temas se entrelaçam. A vida das pessoas LGBTQIA+, assim como de pessoas negras, foram preservadas dentro de terreiros de Candomblé, afirma enquanto traz como referência o escritor Edison Carneiro, especialista em temas afro-brasileiros. É importante mostrar como esses territórios foram, e são, fundamentais para que essas vidas fossem mantidas e, principalmente, trazer a possibilidade de aprendizado.


Falar sobre pessoas homossexuais no Candomblé já é uma possibilidade mais bem aceita pela comunidade mais antiga, mas os transgêneros e as travestis ainda enfrentam maior resistência. Esse processo também é parte de como a pessoa se forma. Deve ser muito complicado para um menino, no corpo de uma menina, passar por todo esse processo e ainda chegar num terreiro e ter que desconsiderar toda a sua história.


Rodney me fala sobre um Orixá pouco conhecido pelas bandas de cá, que ajuda a compreender a transgeneridade por meio do itã. Essa é a história de Otin, por Pai Rodney de Oxóssi:

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Itã: orixá otin

Otin era um rapaz solitário e triste. Não tinha amigos, não namorava, não era nem um pouco sociável. Escondia-se pelos cantos e esquivava-se das pessoas, evitando qualquer tipo de convivência. Misterioso e cheio de segredos, era tão arredio que um dia decidiu fugir para a floresta. Deixou casa, família, riqueza; deixou tudo para trás. Embrenhou-se na mata onde finalmente poderia viver só e em paz.


Logo vieram as dificuldades: fome, frio, cansaço, medo. Otin, que sempre teve tudo, percebeu que não sabia se virar sozinho. De tão exausto, encostou no tronco de uma árvore e adormeceu. Sonhou com um caçador que lhe recomendou um ebó: Otin deveria oferecer suas roupas e sua faca. E assim o fez. Num arbusto junto ao rio, depositou sua faca e sua roupa. Mirou-se nas águas e viu seu corpo de donzela, seu maior segredo. Mas dessa vez não se envergonhou, não se sentiu infeliz. Ao contrário, estava livre e pleno.


Oxóssi apareceu cheio de caças. Veio buscar a oferenda e assim descobriu o grande mistério de Otin. Tomou a faca e tratou os animais. Com as peles cobriu o corpo de Otin e com a carne o alimento. Oxóssi ensinou a Otin a arte da caça e guardou para sempre seu segredo.


Artigo “Homem é homem, mulher é mulher”, escrito por Rodney William e publicado na CartaCapital

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O terreiro de Rodney tem se tornado um expoente, sem pretensão, no acolhimento à pessoas LGBTQIA+, mas há uma reeducação acontecendo. O Candomblé também vai reproduzir alguns preconceitos que a sociedade suscita. A partir daí, a postura do babalorixá vai direcionar a comunidade para acolher, mais ou menos, determinados segmentos.


Ele afirma que a religião tem sido desafiada com questões que ainda não haviam surgido de forma tão forte quanto agora. Segundo Rodney, o máximo que se tinha antigamente eram as mulheres travestis, extremamente marginalizadas, acolhidas no Candomblé, mas, ao mesmo tempo, sem que o terreiro firmasse uma posição sobre como essas pessoas deveriam ser acolhidas. Uma vez que a religião se organiza em torno de funções femininas e masculinas, como essas pessoas que transitam - ou transcendem - poderiam se enquadrar? Essa é uma discussão recente.


Rodney reforça que os terreiros estão dentro da sociedade e vivem a partir dos desafios que ela coloca, e que esse é o momento social em que pessoas trans, travestis, não-binárias, desafiam o Candomblé a se pensar para se adequar a essa sociedade. Entre os paralelos traçados por Rodney, está a desumanização dos corpos pretos e de pessoas LGBTQIA+.


A sociedade se pensa a partir de um padrão: homem, branco, hétero, cis. E tudo que se define a partir dele é o outro. E o outro, normalmente, é o demonizado. Aquele que não se enquadra, que não serve - e ele deixa aberta a interpretação do servir - tem que ser eliminado. E se questiona: Em que medida pessoas negras podem ser eliminadas? À medida em que elas não servem. Em que medidas pessoas LGBTQIA+ podem ser eliminadas? À medida em que elas não servem. E é nessa medida que se dá o processo de extermínio. É esse preconceito que vai dizer quem merece e quem não merece existir.


Fito Rodney por alguns instantes. A força daquelas palavras me fizeram reviver sentimentos que eu não sabia que ainda moravam em mim. Corpos como o meu e das pessoas que eu amo não significam nada para uma sociedade que nos mata por sermos quem somos. Não é difícil compreender porque o refúgio de muitos de nós é a religião. Vai além do acolhimento. É pela necessidade de sobrevivência.


E eu acredito que, quando uma pessoa se percebe uma pessoa LGBTQIA+, ela se dá conta que, para continuar a existir, ela precisa da coletividade, continua Rodney. Para ele, as pessoas LGBTQIA + precisam desse processo de inclusão num território de resistência que vai contribuir para que a vida dela seja mantida.


Ele me incentiva a continuar minha pesquisa para além do TCC. Acredita que levar essas discussões para o campo acadêmico é uma forma de transformar a sociedade, um caminho para o avanço, mesmo que pareça uma utopia, segundo ele, elas servem para caminhar.


Me lembra que é importante trazer o olhar decolonial sobre a ciência, para construir saberes a partir de outros olhares, da ciência produzida em África, entre povos indígenas, confrontando o conhecimento colocado como o certo, o conhecimento europeu, branco.


Se foi pouco ter possibilitado a sobrevivência de tantas pessoas, eu não sei qual é a obra civilizatória vitoriosa, além da nossa. A nossa que nos fez sobreviver a escravidão, que nos faz sobreviver todos os dias ao racismo, ao machismo, a misoginia, a homofobia, a transfobia, essa é a obra vitoriosa, porque está permitindo que pessoas sobreviviam com dignidade, o que é mais importante.


Ele sorri e me pergunta se conseguiu responder minhas perguntas. Agradeço a gentileza e disponibilidade de alguém com agenda tão cheia me atender. Conto que em meu primeiro contato me surpreendi com a rapidez da resposta e como Fábio, o assessor, fez o possível para essa conversa acontecer. Acho que tive sorte, sabe?, falo brincando. Alguns encontros simplesmente são para acontecer, ele me responde.

Rodney se oferece para me mostrar o terreiro. Em cada canto que se olha, há um convite para imersão na ancestralidade.


Descemos a encruzilhada até o portão de entrada, parece que havia muito mais além do que eu tinha visto quando entrei. Logo ali, há um espaço dedicado aos cuidados das Yamí Oxorongá e um jardim de ervas sagradas dos Orixás, usadas em banhos e rituais. Rodney me autoriza tirar foto de tudo que eu quiser. É importante para quebrar esse mito de que o Candomblé esconde coisas. Não há nada escondido.


Subindo a encruzilhada, ele me conta das placas que colocou em cada ladeira do terreiro e na praça em frente ao barracão. Elas ganharam os nomes de seu padrasto, Nelson, sua tia Tota e sua mãe, carinhosamente chamada de Pipo, falecidos durante a pandemia.


Ao lado direito da ladeira principal, ele me mostra a casa de uma de suas familiares, que passou a morar por ali. Mais para cima, há uma casa maior, que serve para acomodar os filhos de santo quando estão no terreiro para as funções.

jardim sagrado

Da entrada já era possível ver o grande salão azul, talvez a maior parte do terreiro, com janelas de vidro e um belo lustre. Ali fica o barracão. De frente para a entrada, fica a casa de Exu. Na porta, há uma imagem de Seu Tranca Rua, a estátua em tamanho real é maior que eu. Pode entrar, fica a vontade!, diz Rodney enquanto me aponta à porta. Lá dentro, há uma escultura do Orixá Exu, moldada pelas mãos do próprio pai de santo. Ao redor, imagens e assentamentos de Exus e Pomba Giras. Todos são cuidados juntos, bem ali. Tiro algumas fotos, elogio a beleza do lugar e saio.


Ao lado da casa de Exu há outra casinha feita de tijolos de barro. Respire e se prepare. Aqui está sua família, ele abre as porta e vejo assentamentos de Nanã e Obaluaê. Tentei segurar as lágrimas, mas não consegui. Para quem não é de axé, deve ser difícil compreender, mas estar na presença do seu Orixá é estar na presença da coisa mais divina que pode existir. Entrar ali foi como entrar também na minha casa.


Tiro algumas fotos do teto coberto de pérolas e do chão repleto de alguidares com pipocas e palhas. Me recomponho e saio.

Ladeira da tota

casa de exu

casa de nanã e obaluaê

Seguimos na subida até uma pracinha que liga o barracão aos quartos de santo e a cozinha. Lá, cada Orixá tem um quartinho onde ficam todos os ibás - ferramentas do Orixá para os fundamentos realizados durante os ritos. Cada Orixá tem o seu, cada um tem suas particularidades e características - respectivos a ele.

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quarto de xangô e oyá

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quarto de oxum

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quarto de oxóssi

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quarto de iemanjá

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quarto de oxalá

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casa de nanã e obaluaê por dentro

Seguimos para a cozinha, um dos lugares mais sagrados do Candomblé, e depois o barracão, onde a festa acontece. De lá, consigo ver todo o terreiro. Digo com tranquilidade que é a maior roça que já estive.


Rodney me conta que adquiriu aquelas terras durante a pandemia, por conselho de Seu Tranca Rua. Me conta que tudo o que eu estava vendo ali foi construído durante a pandemia e que passaram por muitas coisas para conseguir pagar tudo, mas que hoje vivia em paz. Coisas do Orixá, não é mesmo?, ele ri.


Enquanto caminhamos de volta para a casa principal, Rodney me convida para a festa de Ibeji que acontecerá dali algumas semanas. Você vai adorar. Trazemos as crianças da comunidade e fazemos algumas ações sociais para arrecadar brinquedos e alimentos. Eu digo que estarei presente. Me despeço dele e de Fábio e confirmo que nos veremos em breve.

manifestação política a favor da democracia

Volto ao Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá para a festa. A casa já está cheia quando chego. Filhos de santo me recepcionam e entro direto para o barracão. As ladeiras estão tomadas por crianças. Há bexigas por todos os lados. Em um muro, há balões formando o nome do presidente eleito Lula – é importante dizer que o segundo turno das Eleições de 2022 ainda não havia acontecido.


Na praça em frente ao barracão há barracas servindo comidas e doces, acompanhadas de filas grandes de crianças e adultos que aguardam para comer. Na porta de entrada, encontro Rodney que me abraça rapidamente e me autoriza registrar a festa.


Antes do toque começar, Rodney pede a palavra. Conhecido, também, por seu posicionamento político, ele relembra a todos da importância de votar em pessoas comprometidas com as causas do povo preto, com a luta antirracista, com o compromisso de combate à fome e com a proteção das minorias. Ele reafirma que terreiros não são espaços isentos, são espaços de resistência.

O atabaque começa a ser tocado, os filhos começam a dançar, os Orixás começam a virar. Não demora muito e Eduardo Suplicy - seguidor fiel de Pai Rodney - chega para festejar. Em meio aos filhos de santo, Suplicy está à vontade para cantarolar o que sabe e sorrir com os que vão abraçá-lo. Ele também se permite fazer um discurso sobre o momento político do país e a necessidade da luta pelo povo pobre.


Suplicy não é a única figura famosa que encontro por lá. Reconheci algumas atrizes na festa e, enquanto passei para tomar água, encontrei uma das filhas mais famosas de Rodney, a cantora e atriz Linn da Quebrada. Com uma imagem de Exu, ela acenou para mim enquanto eu tentava fotografá-la. Infelizmente, não tivemos tempo para conversar, mas falar de pessoas LGBTQIA+ e encontrá-la, tão feliz em sua própria casa, teve um significado grandioso para mim. Não é assim que deveria ser para todos que buscam no Candomblé um espaço para professar sua fé?

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eduardo suplicy

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linn da quebrada

Não demora para chegar o momento esperado pelos visitantes: hora dos Erês - divindades infantis também conhecidas como Cosmes - aproveitarem a festa. Com seus fios coloridos, chupetas e brinquedos, eles alegraram o dia de mais de 200 crianças em situação de vulnerabilidade social, moradoras de comunidades vizinhas, que, além de doces, brinquedos, presentes, cortes de cabelo e pintura no rosto, levaram para casa uma cesta básica.

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Ver a alegria de cada criança em ter um dia de felicidade - e comida a vontade - me fez lembrar de algo que Rodney me disse na nossa conversa: O que seria do povo preto sem o Candomblé? O que seria do povo LGBTQIA+ sem o Candomblé?. E, parafraseando-o, me perguntei: o que seria do povo pobre sem o Candomblé?.


O que seria dessas crianças, que esperam o ano todo para uma festa em que podem ganhar brinquedos, comer doces e serem olhadas com humanidade e carinho? O Candomblé segue cumprindo uma função para além da religiosa, ele cumpre uma função social. A função de alimentar. A função de acolher. A função de cuidar. E é por essa função que ele sobreviveu e segue resistindo.

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"você não aceita as pessoas se não as respeita como elas são" - mãe rosemeire

Ilê axé de iemanjá ogunté

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barracão do ilê axé de iemanjá ogunté

Que cheiro tem a paz? Que cara tem um lar?


É na curva da rua sem saída do Vila Capoa que se encontra o terreiro do bairro, em Francisco Morato (SP). Um pequeno portão branco com dois quartilhões na entrada anunciam que ali há uma família de axé.


A benção, meu pai Tempo. A benção, vovô. Boa noite, homem do portão. Um a um, os assentamentos reunidos no canto direito da entrada são saudados por todos que entram. O espaço aberto dá acesso à porta do barracão.


Passar pelas cantoneiras é quase como atravessar um portal. As paredes azuis repletas de símbolos e rezas fazem lembrar o céu claro do lado de fora. Há fotos espalhadas pelo barracão que contam a história por trás dos seus 40 anos de existência.


Há bancos nos cantos que servem para acomodar os visitantes. No final do salão, três atabaques aguardam para serem tocados. O altar no meio do salão reúne imagens, dois adjás, velas e quartinhas.


Numa prateleira na parede central, uma Iemanjá de gesso chama atenção - afinal, a casa é dela.

É possível sentir o cheiro da defumação no fogo. É ela que limpa o terreiro antes dos trabalhos se iniciarem. O espaço vai sendo tomado pelos aromas de alecrim, alfazema, arruda, benjoim e guiné.


Dentro do barracão, há uma porta que leva ao roncó - um quarto sagrado onde se encontram os assentamentos de cada Orixá e de entrada restrita. É dali que se escuta o primeiro cântico.


Eu incenso essa casa pro mal sair e a felicidade entrar. Se a paz tem um cheiro, é esse.


Do lado de fora do barracão, há mais uma porta, é a casa de Exu. Neste quarto ficam os assentamentos dessas entidades tão emblemáticas.


Boa noite!, é o que cada um que passa pela porta da casa de Exu diz – mesmo durante o dia.

adjá

Em frente, há outra porta. É possível sentir cheiro de comida. Nas panelas mexidas pelas mulheres da casa, há frango cozido e arroz. É dali que sairá o alimento de todos aqueles que necessitarem.


As pessoas presentes, com seus turbantes e fios coloridos, trocam bênçãos. Dos mais velhos para os mais novos, deitam-se no chão e aguardam o abraço da mãe de santo.

pratos de ebó

O som do adjá fica cada vez mais alto. É neste espaço que se reúne uma família de axé, pronta para adorar ao sagrado. Essa é a cara de um lar. E, para mim, é um espaço conhecido. O Ilê Axé de Iemanjá Ogunté é o meu ilê, a minha casa.


Dirigida por Rosemeire Giannini (52) - ou Yazinha, como os mais próximos preferem chamá-la - a casa é uma das mais antigas da região. Rosemeire é herdeira espiritual de sua mãe, Dalva Giannini (72), há 10 anos.


Desde quando entrei na casa, há uns 13 anos, escuto histórias do meu bisavô de santo, um homem homossexual, imensamente respeitado, quebrando os padrões da sua época em escolher assumir o que era. Acho que, por isso, a sexualidade nunca foi tema de barreiras dentro do ilê.

Com filhos LGBTQIA+, o discurso de Rosemeire sempre foi o mesmo, pautado no respeito mútuo, cumprimento das responsabilidades com o Orixá e merecimento conforme as atitudes de cada um. Tudo que qualquer filho da roça tem direito, eles também têm. Assim como todas as obrigações, afirma.


Ela levanta um ponto importante sobre o papel dos zeladores na recepção de pessoas LGBTQIA+ nos espaços de axé. Enquanto há um discurso de respeito, mas “da porta para fora”, visto em alguns templos, ela reafirma que não enxerga dessa forma em sua casa. O segredo dentro da nossa religião é o respeito e aceitação. Você não respeita as pessoas se você não as aceita como elas são.


Conhecida por ser muito direta, a yalorixá não faz rodeios e deixa claro que não faz parte da cultura de seu ilê a não aceitação.

Quem seria eu, como zeladora, para não aceitar uma pessoa? Eu estaria desfazendo até do Orixá dela. E eu amo o Orixá! Se eu amo o Orixá, como posso não aceitar o gay, o trans? Eu penso assim e nessa roça é assim, ela conclui com um leve sorriso.

Eu sou apenas uma das provas de acolhimento do terreiro. Entre elas está Sheila Giannini (26), filha carnal de Rosemeire. Assumida bissexual recentemente, Sheila só se ‘descobriu’ aos 21 anos, quando se viu apaixonada por outra mulher.

Filha de Oxum, muitas dúvidas ligadas à mitologia dessa Orixá - deusa do amor, da fertilidade, da feminilidade - começaram a rondar sua cabeça. Quando eu me vi apaixonada por uma mulher, eu achava que meus Orixás não iam me aceitar. Que Oxum não ia me aceitar. Sheila passou por um longo caminho até a aceitação, mas afirma que foi um processo pessoal, não religioso.


Psicóloga, Sheila fala sobre sua atuação com pacientes LGBTQIA+ candomblecistas. O Candomblé vem com o acolhimento que eles não tiveram em casa, se torna a família que eles nunca tiveram. A religião é um ponto crucial para todos eles, acaba por nortear boa parte do caminho.


Hoje, noiva da mulher por quem se apaixonou cinco anos atrás, ela conta como o acolhimento por parte do ilê foi importante para o seu processo de aceitação e que pôde, finalmente, se ver feliz vivendo esse amor e professar livremente sua fé.


casal sheila e erivania

Quando falo sobre liberdade de professar a fé, falo com Erick Giannini (30), ogã do ilê e filho carnal de Rosemeire. Ele, que é quase um porta voz da casa, me fala sobre como a roça encara pessoas transgêneras.


O lugar da pessoa trans é garantido conforme ela se identifica. Se é uma mulher trans, é tratada como qualquer outra yabá da casa. Usa a mesma roupa, tem as mesmas funções, os mesmos direitos e deveres, me explica, enquanto usa como exemplo uma das filhas de santo trans da casa. É sobre a liberdade de ser quem é, o respeito sobre o corpo que se tem, sobre a alma que se carrega, sobre como quer e deve ser chamada.


A religião precisa acolher as pessoas e mostrar o que é o amor fraterno. Precisamos de humanidade. A religião também tem essa função de retomar a humanidade, conclui Erick.

Olho para a cadeira da minha zeladora, faz passar filme na minha cabeça. O saudosismo toma conta. Me lembro de quando cheguei nessa roça, tão nova, tão pequena, tão frágil. Foi em um toque de Exu que percebi que aquele era realmente o meu lugar. Para nós, não importa se você vai ficar com homem ou mulher, importa seu coração e felicidade, essas foram as palavras de Exu Veludo para mim. A partir daquele dia eu soube que não havia nada de errado em ser quem eu era.


Cada canto do Ilê Axé de Iemanjá Ogunté guarda uma lembrança de amor e cuidado. Não só para mim, mas para Sheila e tantos outros irmãos de santo. A oportunidade de conhecer a realidade de outros lugares me fazem agradecer ainda mais pela existência do Candomblé. Eu não teria sobrevivido sem ele.


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“Esse espaço é nosso! Ele é do preto, do pobre, dos LGBT!” - Pedro Miguel

Ilê Maroketu Àṣẹ Bàbá Nyfalayo

entrada do Ilê Maroketu Àṣẹ Bàbá Nyfalayo

Chegando ao fim da empreitada das visitas, conheço o Ilê Maroketu Àṣẹ Bàbá Nyfalayo, uma casa quase inteira formada por devotos que se identificam como LGBTQIA+, localizada em Pirituba (SP). Dirigida por Emerson Silva (41), a casa existe há 15 anos e tem cerca de 300 filhos.


Na entrada da casa há um assentamento de Ogum. Pode tirar foto, se quiser, diz um dos filhos de santo. Descendo, vejo a porta que dá entrada para o barracão. A direita, uma casa dividida entre um quarto de santo, um vestiário, uma cozinha e uma sala.


No barracão, o teto é enfeitado com bandeirolas brancas. O ariaxé é decorado com uma fonte d’água. No fundo do salão, há três atabaques e ao lado deles a cadeira do babalorixá. Emerson se acomoda. Pronto! Podemos começar. Adoro falar sobre esses assuntos.


Homossexual, Emerson fala com tranquilidade sobre como sua casa está, e sempre esteve, de portas abertas para pessoas que, assim como ele, buscam o acolhimento.

Eu acho que eles veem em mim uma pessoa que entende o que eles sentem. Se uma pessoa bate na sua porta, ela foi guiada pelo Orixá, então você precisa acolher.

Emerson fala sobre a necessidade de enxergar as pessoas pelo que são dentro da religião e não pela sexualidade. Quantas pessoas LGBT estão pelo mundo magoadas, até com casas de Candomblé, por não terem sido acolhidas? Essas pessoas precisam de amor, de carinho, como todos os seres humanos. A dor e a necessidade são as mesmas!, reforça.


O babalorixá é visto como uma fortaleza para os filhos. Entre os que aceitam falar comigo, está Cleilton Silva (24), que, emocionado, me conta que seu primeiro contato com o Candomblé se dava pela alegria anual das festas de Cosme e Damião. Ele, que vivia adoentado e estava prestes a fazer um transplante de coração, descobriu em um jogo de búzios que precisava se iniciar, aos 16 anos. Só após a iniciação religiosa que sua saúde melhorou. Homossexual assumido desde a juventude, enfrentou rejeição da família, mas a religião foi fundamental para enfrentar as adversidades. Foi o Candomblé que me deu forças para eu ser quem eu sou hoje, me mostrando que, independente da minha sexualidade, posso ser uma boa pessoa, de bom caráter.

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cristian silva

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Cleilton lima

Se enxergar para além da sexualidade não é uma questão apenas de Cleilton. A história de Cristian Lima (25) também esbarra nesse mérito. Ele se assumiu aos 13 anos para sua mãe, que fez apenas um pedido: Ela disse que me amava e que independente disso, queria que eu fosse um homem de atitude, um homem no meu posicionamento perante a sociedade. E eu levo isso até hoje. Sou um homem de palavra, afirma orgulhoso.


Cristian já frequentou igrejas católicas e evangélicas, mas foi dentro do Candomblé que encontrou o que procurava. A igreja evangélica queria que eu fosse outra pessoa. Eu não me reconhecia. Diziam que homem foi feito para mulher e mulher para homem. Eu não acreditava nisso.

Hoje, já um babalorixá, ele fala sobre a importância de respeitar e manter a ancestralidade, mas adaptando para a realidade do mundo atual. Tenho irmãos LGBTQIA+, tenho filha de santo trans, sou mente aberta quanto a isso. Mas no começo foi um processo para sabermos como íamos nos adequar perante ao Orixá, perante a casa, o nosso posicionamento diante as pessoas. Mas temos a nossa opinião sobre isso e, sem perder a essência do Candomblé, é possível se adaptar e receber a todos. Segundo Cristian, a preocupação em manter a tradicionalidade deve existir, mas não deve ser um impeditivo de acolher e inserir pessoas LGBTQIA+ no culto.


Discussão constante no meio religioso, a presença de pessoas trans na religião é um assunto retomado todas as vezes em que falamos sobre acolhimento. Isso porque, para algumas casas, a presença dessas pessoas pode ser vista como uma afronta aos padrões e funções dentro de uma casa de axé.

Pedro Miguel (26), filho de santo de Emerson, é um homem trans. Se descobriu na época em que ainda era da Umbanda, há dois anos e meio. No início do processo de transição, Pedro diz que foi acolhido por sua antiga zeladora, mas enfrentou resistência por parte de outros irmãos de santo que não o aceitavam usando calças e sendo tratado como homem dentro da religião. Por não se sentir confortável sendo tratado dessa forma, Pedro decide sair do terreiro de Umbanda e buscar um novo lugar. Eu tinha muito receio de ir para o Candomblé por falarem muito que, por ser uma religião de muitos dogmas, não acolheriam uma pessoa trans. Fiquei um tempo sem ir a nenhum lugar, até que encontrei essa casa.


Pedro conta que a primeira coisa que perguntou ao seu pai de santo, Emerson, foi como ele acolheria um homem trans na casa. A minha intenção, em nenhum momento, é fugir do que o Candomblé sempre foi. Eu só quero estar em um lugar que me acolha, que me faça sentir bem e feliz.


A fala de Pedro reflete algo básico para qualquer ser humano: a necessidade de ser respeitado. Talvez, para quem está fora da comunidade LGBTQIA+, seja difícil entender como é estar em um ambiente em que ser você não é minimamente tolerado. Para quem é, estar em um lugar onde você pode existir plenamente é encontrar um alívio e até um lar.

Ele reitera que o solo sagrado de axé é um ambiente coletivo, democrático e de todos. Esse espaço é nosso! Ele é do preto, do pobre, dos LGBT!

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pedro miguel

Não há hesitação em sua fala. Pedro é tão convicto de si e do que representa, que se enxerga como alguém que não só aprende, mas que também ensina. Assim como o Candomblé: ensinamento e aprendizado constante.


Me despeço de todos. Antes que eu parta, sou convidada para retornar sempre que quiser. É um trabalho importante esse seu, me fala Emerson antes de sair. É um trabalho importante nosso!, respondo.

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Assentamento de ogum na entrada do terreiro

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imagem da pomba gira maria mulambo

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Aperte o play e confira a entrevista

O Ilê Maroketu Àṣẹ Bàbá Nyfalayo foi a última casa em que passei por essa jornada de visitações. Coincidentemente - ou não - é um ilê quase que inteiro LGBTQIA+, comandado por um pai de santo homossexual, que há mais de 15 anos segue resistindo contra o preconceito e acolhendo a todos que batem em sua porta.


São por zeladores como Emerson que muitas vidas LGBTQIA+ são preservadas e restauradas. Eu poderia criar muitas teorias de como essa reportagem se encerraria falando sobre acolhimento, mas não preciso. Assim como nos itãs do Candomblé, as histórias falam por si.

ACEITAÇÃO - OU NÃO - NOS DIFERENTES CANDOMBLÉS PELO BRASIL

Depoimentos

rio grande do norte

Alyce Roux, 20 anos, transgênero

Se reconheceu aos 18 anos e passou por um longo processo entre se entender e se aceitar. Nessa época, junto à sua mãe, ela procurou diversas religiões, buscando compreender tudo que sentia. A Umbanda e o Candomblé foram grandes portas de autodescobrimento para ela.


Pessoas trans e LGBTQIA+ no geral sempre vão buscar vertentes de esperança. Porque é onde elas encontram acolhimento. Pois é lá onde essas pessoas encontram conforto. Nas religiões africanas, não existem essas distinções de gênero.

Acho que o papel da religião também é mostrar que somos pessoas comuns, apenas mulheres, homens; seres humanos. Fazer esse acolhimento incondicional, sem distinção, que deveria haver em todos os lugares da nossa sociedade.


No Candomblé eu sou vista como uma mulher. Não como mulher trans, apenas como mulher.


Se pudesse voltar ao passado, eu daria a mim mesma o recado que uma entidade me deu. O recado que mudou minha vida: não tem nada errado com você, você não é uma doença, você não é um problema. Você vai encontrar seu lar, vai ser difícil, vai ser cansativo, mas você vai ficar bem.

RIO DE JANEIRO

Fabiana Santos, 40 anos, lésbica

Se descobriu aos 13 anos, mas só teve coragem de assumir publicamente aos 21. Surpresa, conta que foi bem aceita pelos pais, mas não teve a mesma sorte com a sociedade.


Após sofrer um episódio violento de homofobia, Fabiana afirma que é igualmente difícil ser LGBTQIA+ e candomblecista no Rio de Janeiro.


A intolerância cresceu. Muitos traficantes são evangélicos e têm atacado terreiros. No Grande Rio não existem mais barracões, é mais fácil encontrá-los em outras regiões, como na baixada ou no interior. A única favela que sei que ainda tem terreiro é o Chapadão, as outras comunidades não têm mais porque foram expulsos pelo tráfico “cristão”.


As pessoas não têm mais medo de ser violentas, de serem preconceituosas. Aparece muita gente na hora da necessidade, mas no dia a dia, estamos entregues à própria sorte. Cada um por si e Oxalá por todos.


Temos esperança de sermos respeitados, sermos ouvidos. Esse pessoal que aparece na hora que quebram e invadem os terreiros, deveriam aparecer mais, principalmente, no dia a dia.

RIO DE JANEIRO

Sabrina Moreira, 26 anos, lésbica

Seu processo de descoberta e aceitação foi tranquilo. Mas não pode dizer o mesmo da sua aceitação dentro do terreiro. De chacotas à restrições, enfrentou duras críticas enquanto única mulher lésbica da casa que frequentava, apesar de seu pai de santo ser homossexual.


Piorou depois que eu conheci a minha esposa, que foi frequentar o terreiro. Ninguém queria trocar de roupa na nossa frente. Eu não podia ter amizade com mulheres porque achavam que eu estava dando em cima. Foram inúmeras situações dolorosas.


Eu sobrevivi com esse medo de sair da casa de santo, porque temos medo de que lá fora, fora da religião, seja ainda pior, você fica tolhido no medo. Eu pensei várias vezes em sair, por vários motivos, inclusive ligados à minha sexualidade. Mas eu tinha medo de sair e minha vida acabar.


Demorei muito para entender que eu não tinha culpa de tudo que aconteceu e também para entender que o Orixá não está lá, está dentro de mim. Eu espero que a gente tenha cada vez mais casas de santo que aceitem a gente ser a gente.


Espero que todas as casas de axé se tornem ambientes mais inclusivos. Já é tão difícil lidar com o preconceito do lado de fora, a casa de axé tem que ser um espaço de acolhimento.

MARANHÃO

Sara Martina, 20 anos, bissexual

Recém iniciada no Candomblé, se compreendeu bissexual aos 14 anos. Com uma relação muito tranquila com a sua sexualidade, aponta que ter crescido sem uma religião facilitou tanto o processo de descoberta sexual quanto de entrada no Candomblé.


As religiões de matriz africana que são mais comuns aqui no Maranhão são a Umbanda e o Tambor de Mina.


Tanto que, aqui em São Luiz, que eu saiba, só existem duas casas de Candomblé, que foram criadas mais ou menos na mesma época pelo mesmo pai de santo, no caso, meu avô de santo.


O terreiro é um lugar de muito acolhimento. Quando eu entrei eu pensei nisso, como iam encarar a minha sexualidade, porque a gente ouve coisas de outras religiões, mas isso nunca foi uma questão. Minha casa, por exemplo, é composta em 70% por pessoas LGBTQIA+.


Desde que eu entrei eu sinto minha vida mais leve e sei que se eu tropeçar, se eu cair, vou ter quem estará por mim: meus Orixás, meus Exus, minha mãe de santo, minha família de santo e isso me traz muito conforto e acolhimento.

indicações de leitura

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orixás

Por Pierre Fatumbi Verger

O livro é fruto das constantes viagens de Pierre Verger à África entre os anos de 1948 e 1965 e apresenta textos e ilustrações que mostram certos aspectos do culto aos orixás, deuses dos iorubás, em seus lugares de origem, na África (Nigéria, ex-Daomé e Togo) e no Novo Mundo (Brasil e Antilhas).

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mitologia dos orixás

Por Reginaldo Prandi

É a mais completa coleção de mitos da religião dos orixás já reunida em todo o mundo. São 301 relatos mitológicos, histórias que contam como são, o que fazem, o que querem e o que prometem os deuses desse riquíssimo panteão africano.

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lendas africanas dos orixás

Por Pierre Fatumbi Verger

O livro traz um compilado de lendas, cuidadosamente coletadas por Verger em 17 anos de sucessivas viagens pela África Ocidental, desde 1948, período em que se tornou Babalaô (1950) e quando recebeu do seu mestre Oluô o nome de Fatumbi.

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Segredos do Poder: Hierarquia e Autoridade no Candomblé

Por Patrício Carneiro Araújo (Autor), Roger Cipó (Fotógrafo)

Neste livro, o autor investiga em que medida essa transformação epistemológica do segredo, por assim dizer, põe em xeque a autoridade e instaura crises de poder na hierarquia do Candomblé.

ficha técnica

Trabalho de Conclusão de Curso do 8º semestre

de Jornalismo


Orientação: Prof. Dr. Gean Oliveira Gonçalves


Coordenação de Jornalismo: Prof. Ma. Nicole Morihama


Diretor da HECSA: Prof. Dr. Fernando Albino Leme


Vice-Presidente Acadêmico: Prof. Dr. Manuel Nabais da Furriela


Presidente/Reitor: Prof. Arthur Sperandéo de Macedo


FMU | FIAM-FAAM Centro Universitário - 2022